O debate sobre a personalidade jurídica dos animais, embora não os equipare a pessoas
humanas em sentido estrito, insinua uma reconceptualização deles como seres dotados de
direitos, que transcendem a mera propriedade. Esse reconhecimento implica uma série de
obrigações legais que visam proteger o bem-estar dos animais, garantindo-lhes uma
existência digna e consideração por suas necessidades físicas e emocionais. Este ponto de
vista é reforçado por legislações específicas que proíbem os maus-tratos e promovem a
proteção animal, como a Lei nº 13.964/2019, que embora não confira explicitamente
personalidade jurídica aos animais, serve como um marco legal para sua proteção.
As decisões recentes do STF têm sido particularmente reveladoras quanto à direção que a
jurisprudência brasileira está tomando neste assunto. O tribunal tem reconhecido a
necessidade de uma abordagem diferenciada quando se trata de decidir sobre a guarda de
animais em casos de divórcio, considerando-os além de meros objetos de disputa. Os
magistrados têm ponderado sobre a capacidade de senciência dos animais, reconhecendo-
os como seres capazes de sentir dor e prazer, e, portanto, merecedores de consideração
especial no que tange às decisões judiciais que afetam seu bem-estar.
Neste contexto, em casos de divórcio por exemplo, o conceito de "guarda" de animais
passou a incorporar considerações que vão além das aplicadas a objetos inanimados ou
propriedades, aproximando-se mais das considerações aplicadas à guarda de crianças,
embora com as devidas distinções. O foco recai sobre o bem-estar do animal, avaliando-se
com quem ele estabeleceu o maior vínculo afetivo e quem pode oferecer as melhores
condições para sua saúde física e mental. Essa abordagem é evidência de um avanço no
reconhecimento jurídico do valor intrínseco dos animais e de sua importância dentro do
núcleo familiar.
O reconhecimento da UNESCO sobre os animais como "seres sencientes"; é um marco
significativo que reflete uma mudança paradigmática na forma como a sociedade e o
sistema jurídico compreendem e valorizam a vida não humana. Este reconhecimento
implica uma visão dos animais como seres capazes de sentir dor, prazer e emoções, o que
os coloca além da mera categoria de propriedade ou objeto. Tal perspectiva reforça a
necessidade de proteção legal para os animais, considerando suas necessidades físicas e
emocionais.
As discussões sobre a proteção de animais englobam uma ampla gama de espécies,
incluindo animais silvestres, domésticos e domesticados. A proteção destas diferentes
categorias de animais apresenta desafios específicos e requer abordagens jurídicas
distintas. Animais silvestres, por exemplo, são frequentemente protegidos por legislações
ambientais que visam conservar a biodiversidade e garantir o equilíbrio dos ecossistemas.
Já os animais domésticos e domesticados estão mais sujeitos às leis de proteção animal,
que buscam assegurar seu bem-estar e prevenir maus-tratos.
O conflito entre a visão holística da Constituição e o antropocentrismo do Código Civil é um
aspecto crucial que permeia o debate sobre os direitos dos animais. Enquanto a Constituição Federal de 1988 adota uma abordagem mais inclusiva e holística,
reconhecendo o valor intrínseco da vida e a importância da preservação do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, o Código Civil brasileiro, em contrapartida, ainda reflete uma
visão antropocêntrica que tende a considerar os animais como propriedades ou objetos de
posse. Esta dicotomia entre os princípios constitucionais e as normas civis cria um cenário
jurídico complexo e desafiador, que exige uma revisão e atualização das leis para refletir
uma perspectiva mais atualizada e progressista sobre os direitos dos animais.
Em 2019, o Senado Federal aprovou o PLC 27/2018, segundo o qual os animais deixam de
ser considerados objetos e passam a ter natureza jurídica sui generis, como sujeitos de
direitos despersonificados. Em consulta pública feita pelo Senado, a proposição recebeu
aprovação de mais de 24 mil pessoas, contra apenas 731 votos negativos. O projeto
reconhece nos animais a condição de seres sencientes – ou seja, que têm sentimentos – e
altera o Código Civil para que não sejam mais considerados bens semoventes. Como a
proposta teve início na Câmara dos Deputados e foi aprovada com alterações no Senado, o
projeto retornou à primeira casa para nova análise (PL 6.054/2019). Neste ano, a Câmara
dos Deputados recebeu o PL 179/2023, que busca regulamentar a família multiespécie –
definida como a comunidade formada por seres humanos e animais de estimação – e prevê
uma série de direitos para os pets, inclusive pensão alimentícia e participação no
testamento do tutor. A ilustre subcomissão da parte geral propôs a inclusão de um novo
artigo no Código Civil, especialmente dedicado à qualificação jurídica dos animais.
Eis a proposta:
Dos Bens Móveis e Animais
(…)
Art. 82-A Os animais, que são objeto de direito, são considerados seres vivos dotados de
sensibilidade e passíveis de proteção jurídica, em virtude da sua natureza especial.
§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá
sobre o tratamento ético adequado aos animais;
§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as
disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza e
sejam aplicadas considerando a sua sensibilidade;
§ 3º Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela
correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos
sofridos.
Os argumentos apresentados para justificar o novo artigo são os seguintes:
O atual texto do artigo 82 do CC dispensa aos animais o tratamento de bens móveis
semoventes, o que, no entanto, não é o mais correto. Afinal, os animais são seres vivos e,
por isso, devem contar com proteção jurídica e tratamento diferenciados. Ocorre que a
proteção dos animais, até mesmo diante da complexidade da matéria e impossibilidade de
esgotamento no presente texto, deve ser trabalhada em legislação específica, não cabendo
ser objeto exaustivo do Código Civil. Assim, com inspiração no Código Civil português, a
presente proposta busca incluir o artigo 82-A e seus parágrafos no Código Civil brasileiro,
dispondo sobre a diferenciação do tratamento jurídico dos animais e estimulando a
elaboração de lei específica sobre o tema.
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